Modelos de Negócio e Transformação Digital: Inovações no Campo Arquivístico

 

Modelos de Negócio e Transformação Digital: Inovações no Campo Arquivístico

Introdução

A transformação digital, frequentemente tratada de forma superficial no discurso organizacional, não se restringe à mera inserção de tecnologias digitais ou à conversão de documentos em formatos eletrônicos. Trata-se de um processo complexo, que exige mudança estrutural profunda, incluindo a revisão ou reinvenção dos modelos de negócio. Essa questão ganha centralidade nos debates sobre a Arquivologia e a gestão da informação em tempos de digitalização intensiva.

No Brasil, a distinção conceitual entre digitização e digitalização não foi adequadamente consolidada, gerando confusões terminológicas e práticas equivocadas, especialmente nos setores arquivísticos. Essa problemática reflete-se nos processos de gestão documental, de preservação digital e, sobretudo, na incapacidade de muitos serviços de arquivo de inovar ou transformar seus modelos de funcionamento diante das tecnologias emergentes.

Este ensaio teórico é resultado dos seminários de pesquisa do Grupo de Pesquisa CNPq sobre Preservação Digital Sistêmica, e busca discutir, com respaldo bibliográfico robusto, o papel dos modelos de negócio no contexto da transformação digital arquivística, explorando as inovações sustentadas e disruptivas, e dialogando com a literatura nacional e internacional da área da Ciência da Informação.


1. Modelos de Negócio: Conceito e Importância

O conceito de modelo de negócio tornou-se central nos estudos de inovação e transformação digital a partir dos anos 2000. Segundo Osterwalder e Pigneur (2010, p. 14), um modelo de negócio descreve "a lógica de criação, entrega e captura de valor por uma organização". Ou seja, trata-se da maneira como uma organização gera valor para seus públicos e se mantém sustentável no mercado ou no setor público.

Magretta (2002) complementa essa definição afirmando que o modelo de negócio explica quem é o cliente, qual valor é oferecido, e como essa organização será economicamente viável. No contexto dos arquivos públicos e privados, a questão do modelo de negócio passa, portanto, por redefinir como os arquivos entregam valor à sociedade, como garantem acesso à informação, transparência e preservação da memória institucional em meio digital.

Quadro 1 – Elementos do Modelo de Negócio segundo Osterwalder e Pigneur (2010):

ElementoDescrição
Proposta de valorSolução oferecida ao cliente
Segmento de clientesQuem se beneficia do serviço
Canais de distribuiçãoComo o serviço chega ao cliente
Relacionamento com o clienteComo se estabelece o vínculo
Fontes de receitaComo se financia o serviço
Recursos principaisInfraestrutura, tecnologia e pessoal
Atividades-chaveProcessos essenciais
Parcerias principaisRedes de apoio e cooperação
Estrutura de custosCustos operacionais

No campo arquivístico, é fundamental compreender que os serviços de arquivo também operam modelos de negócio, mesmo que vinculados à administração pública. Esses modelos definem a maneira como arquivos são geridos, como se estruturam financeiramente, quais públicos atendem e de que forma entregam valor à sociedade, seja no cumprimento da Lei de Acesso à Informação, na preservação da memória institucional ou na garantia de direitos.


2. Transformação Digital: Muito além da Tecnologia

A transformação digital não deve ser confundida com processos de digitização ou digitalização isolados. Na literatura internacional, essa diferença é bem estabelecida:

  • Digitização (digitization) refere-se à conversão de suportes físicos em digitais. É um processo técnico, por exemplo, a escanização de documentos.

  • Digitalização (digitalization), nos termos de Parviainen et al. (2017), significa a integração de tecnologias digitais nos processos organizacionais, modificando fluxos de trabalho e serviços.

  • Transformação Digital (digital transformation) implica uma mudança estrutural no modo como uma organização opera, com impacto nos modelos de negócio, cultura organizacional, gestão e entrega de valor (WESTERMAN; BONNET; MCAFEE, 2014).

No Brasil, essa diferenciação nem sempre é respeitada. Muitos órgãos públicos e privados dizem estar passando por transformação digital quando, na verdade, apenas digitalizaram documentos. Isso revela um reduccionismo tecnológico, que ignora as dimensões estratégicas e culturais da transformação.

Segundo Reis et al. (2018), a transformação digital requer a revisão completa da proposta de valor e a alteração dos processos fundamentais de uma organização, e não apenas a adoção de ferramentas tecnológicas.


3. Inovação Sustentada e Inovação Disruptiva

O conceito de inovação é outro eixo fundamental deste debate. Segundo Christensen (1997), há dois tipos principais de inovação:

  • Inovação Sustentada (sustaining innovation): aprimora produtos ou serviços já existentes, mantendo o modelo de negócio atual.

  • Inovação Disruptiva (disruptive innovation): cria novos modelos de negócio, alterando radicalmente as formas de entrega de valor e, muitas vezes, tornando obsoletos os modelos anteriores.

No campo arquivístico, podemos observar exemplos dos dois tipos:

  • Inovação sustentada: implantação de sistemas informatizados de protocolo ou gestão documental, como o SEI ou SIGADs, que automatizam processos já existentes.

  • Inovação disruptiva: adoção de Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis (RDC-Arq), interoperáveis com sistemas de gestão documental e plataformas de transparência ativa, redefinindo a relação entre cidadão, documento e Estado.

Flores e Gava (2023) argumentam que a cadeia de custódia digital arquivística (CCDA) e os repositórios confiáveis são elementos centrais para uma transformação disruptiva dos serviços arquivísticos, pois alteram a lógica de guarda, acesso e preservação.


4. Arquivologia e Modelos de Negócio: Uma Nova Centralidade

A Arquivologia, tradicionalmente voltada à organização e guarda de documentos, precisa revisitar seu papel na era digital. Como alerta Jardim (2016), é necessário transitar de uma prática reativa, voltada ao passado, para uma atuação estratégica, integrada à gestão da informação e à governança digital.

Nesse cenário, surgem novas questões:

  • Como os arquivos públicos e privados reconfiguram seus serviços para agregar valor na sociedade digital?

  • Como passam de centros de guarda para plataformas de serviços informacionais?

  • Como garantem sustentabilidade em tempos de escassez de recursos?

Essas perguntas exigem pensar o modelo de negócio arquivístico como uma matriz que envolve não só a preservação, mas a interoperabilidade, a segurança jurídica, a transparência e a participação cidadã.


5. Estudos e Pesquisas sobre o Tema

Na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), encontramos pesquisas recentes que abordam esta problemática. Destaca-se a dissertação de:

MARTINS, Luciana Dias. Modelo de Negócio e Transformação Digital em Arquivos Públicos: uma proposta para o contexto brasileiro. 2022. 180 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022.

Martins (2022) propõe um modelo de negócio arquivístico alinhado à transformação digital, baseado no tripé: tecnologia, processos e pessoas. A autora defende que apenas digitalizar acervos não altera o valor entregue à sociedade, sendo necessário repensar a função social dos arquivos e seu papel estratégico.


Considerações Finais

O campo arquivístico está diante de um ponto de inflexão histórico. A transformação digital não se restringe a ferramentas ou à migração de suportes. Exige uma reconfiguração dos modelos de negócio, colocando o cidadão no centro da entrega de valor.

Para que os arquivos públicos e privados cumpram seu papel na sociedade digital, precisam:

  • Adotar tecnologias interoperáveis e confiáveis;

  • Redefinir seu relacionamento com a sociedade;

  • Implementar novos serviços baseados em dados e acesso aberto;

  • Rever a cultura organizacional, promovendo uma visão estratégica.

Sem isso, continuarão presos a práticas de mera digitalização, incapazes de se adaptar ao novo ecossistema informacional.


Referências

CHRISTENSEN, Clayton M. The Innovator's Dilemma: When New Technologies Cause Great Firms to Fail. Boston: Harvard Business Review Press, 1997.

FLORES, Daniel; GAVA, Tânia. Cadeia de Custódia Digital Arquivística e Repositórios Confiáveis: uma proposta para o cenário brasileiro. Maceió: EDUFAL, 2023.

JARDIM, José Maria. A função social dos arquivos na era da informação. Revista do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 20-37, 2016.

MAGRETTA, Joan. Why Business Models Matter. Harvard Business Review, Boston, may 2002.

MARTINS, Luciana Dias. Modelo de Negócio e Transformação Digital em Arquivos Públicos: uma proposta para o contexto brasileiro. 2022. 180 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2022.

OSTERWALDER, Alexander; PIGNEUR, Yves. Business Model Generation. Hoboken: John Wiley & Sons, 2010.

PARVIAINEN, Päivi et al. Tackling the digitalization challenge: how to benefit from digitalization in practice. International Journal of Information Systems and Project Management, v. 5, n. 1, p. 63-77, 2017.

REIS, João et al. Digital transformation: a literature review and guidelines for future research. In: Proceedings of the International Conference on Business Excellence, v. 12, n. 1, p. 1019-1031, 2018.

WESTERMAN, George; BONNET, Didier; MCAFEE, Andrew. Leading Digital: Turning Technology into Business Transformation. Boston: Harvard Business Review Press, 2014.


Resumo

Este ensaio teórico discute os modelos de negócio no contexto da transformação digital da Arquivologia, diferenciando digitalização, digitização e transformação efetiva. Argumenta-se que inovar não é apenas adotar tecnologia, mas mudar estruturalmente o modelo de entrega de valor dos serviços arquivísticos.

Resumen

Este ensayo teórico discute los modelos de negocio en el contexto de la transformación digital de la Archivología, diferenciando digitalización, digitización y transformación real. Se argumenta que innovar no es solo adoptar tecnología, sino cambiar estructuralmente el modelo de entrega de valor de los servicios archivísticos.

Abstract

This theoretical essay discusses business models in the context of digital transformation in Archival Science, differentiating between digitization, digitalization, and true transformation. It argues that innovation is not just about adopting technology but about structurally changing the value delivery model of archival services.

Résumé

Cet essai théorique traite des modèles économiques dans le contexte de la transformation numérique en Archivistique, en distinguant numérisation, digitalisation et véritable transformation. Il soutient que l'innovation ne consiste pas seulement à adopter des technologies, mais à changer structurellement le modèle de livraison de valeur des services d'archives.



Prof. Daniel Flores/PPGCI/UFF 

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