A Estrutura da Confiabilidade: Decifrando os Pacotes SIP, AIP e DIP do Modelo OAIS (ISO 14721)

I. O Mandato da Preservação Digital

O Panorama da Obsolescência e a Resposta do OAIS

O desafio fundamental da era digital reside na transitoriedade inerente aos seus suportes e formatos. O ciclo de vida acelerado das tecnologias (hardware e software) impõe um risco existencial à informação digital, tornando a preservação passiva, baseada apenas na estocagem física, uma abordagem inviável. A cada migração de sistema ou evolução de formato, a capacidade de interpretar e comprovar a autenticidade dos dados históricos é colocada à prova.

Para enfrentar esta ameaça de obsolescência e garantir que a informação de valor social, histórico ou probatório sobreviva, foi desenvolvido o Open Archival Information System, ou Modelo de Referência OAIS.

O OAIS, primeiramente publicado como um padrão recomendado e subsequentemente consolidado na norma International Organization for Standardization (ISO) 14721 (com suas versões de 2003 e 2012, e a mais recente de 2025 ), consiste no padrão mais sólido no âmbito da preservação digital. Ele fornece um arcabouço conceitual, terminológico e funcional que define as responsabilidades de um arquivo digital.

Definindo o Propósito Central do Modelo OAIS

O Modelo OAIS serve para garantir que a informação digital, considerada de necessidade de "preservação em longo prazo," permaneça acessível e interpretável. O termo "longo prazo" não se refere a um período fixo (como 50 ou 100 anos), mas sim a qualquer lapso temporal que possa ser impactado pela mudança tecnológica ou pela evolução da comunidade que consome essa informação.

Para cumprir esse mandato, o OAIS define um modelo funcional, que descreve as atividades necessárias (como Ingestão, Preservação, Acesso), e um modelo de informação, que estrutura como o conteúdo e seus metadados essenciais devem ser organizados para o armazenamento seguro.

O Conceito Unificador: O Pacote de Informação

No centro do modelo de informação do OAIS está o conceito de Pacote de Informação. Este é a unidade conceitual que encapsula o objeto de informação a ser preservado, que consiste na Informação de Conteúdo (o objeto de dado e sua informação de representação) e a Informação Descritiva de Preservação (PDI).

O sucesso da preservação digital, conforme estruturado pelo OAIS, depende da capacidade do repositório de manter a informação interpretável para a Comunidade Designada ao longo do tempo. Essa comunidade é o grupo de consumidores capaz de compreender a informação preservada. A preservação deve, portanto, endereçar a evolução do conhecimento dessa comunidade. Isso exige que o OAIS não preserve apenas o dado, mas também o conhecimento necessário para representá-lo e entendê-lo, justificando o papel crucial da PDI no monitoramento e atualização da Informação de Representação. O OAIS aborda essa complexa necessidade de comunicação e interpretação, definindo três tipos de pacotes de informação, cada um com uma finalidade específica no ciclo de custódia.

II. Desenvolvimento: A Tríade Funcional dos Pacotes de Informação

Embora o OAIS trate a mesma informação de conteúdo, ele a organiza em três pacotes distintos: pacote de Informação de submissão (SIP), pacote de Informação de arquivamento (AIP) e o pacote de informação de disseminação (DIP). Esta distinção é estratégica e reflete as necessidades e finalidades de cada ator envolvido: Produtores, Preservadores e Consumidores.

Pacote de Informação de Submissão (SIP)

O Pacote de Informação de Submissão (Submission Information Package - SIP) é o recipiente inicial, a unidade de transferência que o Produtor (a entidade ou indivíduo que cria a informação) envia ao OAIS.

• Função e Utilidade: A principal função do SIP é servir como o veículo padronizado para a transferência e aceitação dos documentos digitais, iniciando o processo de custódia e preservação. O SIP estabelece um diálogo claro entre o Produtor e o Arquivo, garantindo que os documentos submetidos atendam aos requisitos de metadados necessários para que o repositório inicie suas operações.

• A Mutabilidade do SIP: A característica definidora do SIP é sua natureza transitória. O SIP obrigatoriamente sofrerá transformação durante a fase de Admissão (Ingest), independentemente de sua complexidade inicial. Na forma mais simples, essa transformação envolve a inserção de informações de empacotamento. O processo de Admissão classifica os objetos de informação recebidos no SIP e os transforma em um conjunto de AIPs e descrições de pacote que o arquivo pode aceitar e armazenar.

Pacote de Informação de Arquivamento (AIP)

O Pacote de Informação de Arquivamento (Archival Information Package - AIP) é a unidade conceitual fundamental do OAIS, projetada exclusivamente para a preservação de longo prazo de documentos digitais. Uma vez criado, o AIP é armazenado no subsistema de Armazenamento Arquivístico e monitorado ao longo do tempo.

A Transformação Crítica

O processo de transformação do SIP em AIP não é uma mera cópia, mas uma agregação de valor arquivístico. O modelo OAIS permite uma relação complexa e flexível, onde um ou mais SIPs podem ser transformados em um ou mais AIPs (uma relação de Muitos para Muitos).

Essa flexibilidade é uma vantagem estratégica crucial para a gestão arquivística. Ela permite que a entidade de Admissão reorganizadora do material recebido (o SIP) para refletir a organicidade, a linha de custódia e as necessidades de preservação do arquivo. Por exemplo, o processo pode envolver a normalização dos formatos de arquivo para um elenco gerenciável de formatos apropriados para preservação. Este é o momento em que o objeto de dado bruto é tecnicamente enriquecido e se torna um documento arquivístico digital confiável, com metadados robustos para a custódia perpétua.

O AIP resultante deve ter um conjunto completo de Informação Descritiva de Preservação (PDI) para as informações de conteúdo associadas.

Componente Essencial: A Informação Descritiva de Preservação (PDI)

O AIP consiste em dois tipos de objetos essenciais: a Informação de Conteúdo (o documento digital em si) e a PDI (os metadados necessários para garantir a preservação). A PDI é o pilar da confiabilidade, sendo um elemento obrigatório e completo apenas no AIP, o que justifica a sua finalidade de preservação e manutenção da autenticidade do documento.

A PDI agrega confiabilidade e possibilita manter aspectos cruciais da gestão arquivística digital, como a integridade, a organicidade e a linha de custódia.

A PDI é categorizada em quatro componentes vitais:

1. Proveniência: Registra a linha de custódia ininterrupta, detalhando quem produziu, quem recebeu, quando e por quê. Este histórico de custódia é fundamental para comprovar a autenticidade e o contexto arquivístico do documento.

2. Fixidez: Informações técnicas (como checksums) que protegem contra alterações não autorizadas ou não registradas. É essencial para monitorar constantemente a integridade dos AIPs, um requisito exigido, por exemplo, nas diretrizes nacionais de Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis (RDC-Arq).

3. Referência: Identificadores únicos que garantem que a informação de conteúdo possa ser localizada e citada de forma exclusiva.

4. Contexto: Descreve como as informações de conteúdo se relacionam com outras informações dentro ou fora do pacote, auxiliando na interpretação e entendimento do valor probatório do documento. A PDI também comporta informações sobre direitos de acesso e licenças, proporcionando condições claras para o uso futuro.

A Descrição do Pacote (Package Description)

Além da Informação de Conteúdo e da PDI, o AIP está associado a uma estrutura de informações descritivas conhecida como Descrição do Pacote (Package Description). É crucial notar a distinção: a Descrição do Pacote não é um requisito para a preservação da Informação de Conteúdo, mas é necessária para fornecer visibilidade e acesso aos conteúdos.

A Descrição do Pacote atua como o catálogo ou índice do AIP. Ela permite ao consumidor localizar e analisar as informações de interesse antes de solicitar a recuperação do AIP. A Descrição do Pacote contém Descrições Associadas (Associated Descriptions), que são informações necessárias para diversos instrumentos de acesso (access aids):

• Instrumentos de Busca (Finding Aid): Auxiliam o consumidor a localizar a informação.

• Instrumentos de Recuperação (Retrieval Aid): Traduzem o identificador único do AIP para identificá-lo no armazenamento e permitir que o OAIS retorne o conteúdo solicitado.

• Instrumentos de Solicitação (Ordering Aid): Permitem ao consumidor especificar transformações a serem realizadas no AIP antes de sua disseminação.

Pacote de Informação de Disseminação (DIP)

O Pacote de Informação de Disseminação (Dissemination Information Package - DIP) é o resultado do processo de Acesso e é gerado pelo OAIS em resposta a uma requisição do Consumidor.

Derivação e Customização: O DIP é derivado da totalidade ou de uma parte do AIP. Ele é frequentemente adaptado para atender o formato ou subconjunto de dados solicitado pelo usuário, podendo incluir coleções de AIPs ou partes da PDI.

A geração do DIP ilustra a separação lógica entre as funções de Preservação e Acesso no OAIS. O AIP é o "mestre" de preservação, focado em estabilidade e integridade, enquanto o DIP é flexível e focado na usabilidade pelo usuário final. Essa separação funcional é essencial, pois garante que a necessidade imediata e mutável de acesso não comprometa a estabilidade e a autenticidade do objeto digital preservado.

Requisito de Confiabilidade na Disseminação: Para que o OAIS seja confiável, as diretrizes (como as do RDC-Arq no Brasil) estabelecem requisitos rigorosos para o processo de geração do DIP. O repositório deve ser capaz de garantir a autenticidade dos DIPs, entregando cópias autênticas dos originais ou viabilizando um rastreamento auditável da relação entre o DIP e o objeto original (o AIP). Isso assegura que, mesmo após a transformação e adaptação para o acesso, a cadeia de custódia e a confiabilidade da informação sejam mantidas.

Vantagens na Padronização da Tríade Funcional

A adoção da tríade SIP-AIP-DIP não é apenas uma formalidade, mas uma metodologia para gerenciar a complexidade do ciclo de vida digital.

Vantagens em Usá-los: O modelo proporciona clareza funcional e modularidade no sistema de arquivamento, facilitando a interoperabilidade e a gestão eficaz dos processos. Cada pacote define claramente o seu papel, o nível de metadados obrigatórios e as responsabilidades envolvidas (Produtor, Arquivador, Consumidor).

O quadro a seguir resume as funções distintas e a obrigatoriedade de seus componentes centrais:

Quadro 1 - Comparação Funcional dos Pacotes de Informação OAIS

Pacote	Sigla	Função Principal	Obrigatoriedade da PDI (Preservação)	Público-Alvo Principal	Exigência de Transformação
Pacote de Submissão	SIP	Transferência de dados (Ingest)	Opcional/Preparatória	Produtor	Alta (Sempre sofre alguma transformação para virar AIP)
Pacote de Arquivamento	AIP	Preservação de Longo Prazo	Sim (Completa e Auditável)	Arquivo Digital (Custodiador)	Não (Estável), mas sujeito a migrações de preservação.
Pacote de Disseminação	DIP	Fornecimento de Acesso (Access)	Opcional/Adaptada ao pedido	Consumidor	Alta (Derivação do AIP, adaptada ao formato solicitado)

III. Conclusão Estratégica: Sustentabilidade, Benesses e ROI

A Viabilidade e Sustentabilidade do Uso dos Pacotes OAIS

A questão sobre a sustentabilidade do uso dos pacotes OAIS é respondida pelo seu reconhecimento internacional como o modelo conceitual de preservação digital de longo prazo. O OAIS (ISO 14721) não é apenas um padrão técnico; ele é um padrão de governança institucional que garante a continuidade dos negócios e a integridade do patrimônio digital.

Sustentabilidade e Conformidade Regulatória

A sustentabilidade do é reforçada quando o modelo é adotado como base para regulamentações nacionais. No Brasil, o Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) utiliza o Modelo de Referência OAIS como padrão para as Diretrizes de Repositórios Arquivísticos Digitais Confiáveis (RDC-Arq).

O RDC-Arq exige que o repositório seja capaz de documentar a criação do AIP, monitorar constantemente a integridade desses AIPs e produzir Pacotes de Disseminação (DIPs) que demonstrem autenticidade em relação ao objeto original. A obrigatoriedade regulatória de gerenciar AIPs e DIPs de forma auditável transforma a adoção do OAIS em uma necessidade de compliance, impulsionando a sustentabilidade e o investimento contínuo na infraestrutura de preservação.

Mitigação de Riscos Estratégicos

A padronização oferecida pelo OAIS — desde a submissão formal (SIP) até a preservação controlada (AIP) — mitiga riscos significativos. A PDI, com foco na Fixidez e Proveniência, garante evidência probatória, protegendo a organização contra o risco de perdas catastróficas, invalidação de documentos legais e fraudes. Empresas que buscam o crescimento sustentável priorizam a prevenção a fraudes e o compliance com regulamentações.

Adicionalmente, a adoção rigorosa do modelo na manutenção dos registros históricos e legais é uma demonstração de responsabilidade corporativa (pilar de Governança no contexto ESG). Isso eleva a credibilidade institucional e atrai investidores e consumidores que buscam empresas com uma visão de longo prazo e compromisso com a transparência e a continuidade da informação.

Quais as Benesses no Uso? O Retorno Sobre o Investimento (ROI)

O modelo OAIS permite que a preservação digital seja vista como um ativo, e não meramente como um centro de custo. As benesses de seu uso se traduzem em um Retorno sobre o Investimento (ROI) estratégico:

1. Vantagem Competitiva e Eficiência Operacional: A padronização dos processos (transferência via SIP, arquivamento via AIP e acesso via DIP) otimiza a gestão de recursos e elimina redundâncias, resultando em maior eficiência operacional e rentabilidade. A clareza das funções facilita a gestão eficaz dos recursos tecnológicos e humanos.

2. Mitigação de Riscos Legais e Aumento da Transparência: Ao garantir a integridade (Fixidez) e a linha de custódia (Proveniência), o repositório se torna um sistema de prova confiável. A transparência e a consistência exigidas pelo modelo facilitam o escrutínio e a comparação de informações, mitigando riscos de irregularidades e alinhando a organização com altos padrões de governança.

3. Melhoria da Imagem Institucional e Credibilidade: Uma organização que demonstra preocupação não apenas com os resultados financeiros, mas com o que deixa para o futuro e as próximas gerações, reforça sua imagem de marca e ganha vantagem competitiva. O OAIS garante que o ativo mais valioso — a informação institucional e histórica — seja mantido disponível e autêntico.

4. Disponibilidade e Acesso Contínuo: O modelo garante que, apesar das mudanças tecnológicas, a informação de conteúdo (protegida pelo AIP) possa ser traduzida em um formato útil para o consumidor (DIP). Isso garante a utilidade e o valor continuado do acervo preservado.

Veredito Final: Vale a Pena Adotar o Modelo OAIS?

A tríade de pacotes de informação SIP, AIP e DIP define o fluxo de trabalho para um sistema de arquivamento confiável. O SIP é a porta de entrada controlada; o AIP, com sua PDI robusta, é a célula de preservação que garante a autenticidade; e o DIP é o veículo de acesso flexível e auditável.

A adoção do Modelo de Referência OAIS é mais do que uma conformidade técnica; é uma decisão estratégica de governança e sustentabilidade institucional. O modelo é amplamente aceito e utilizado por diversas organizações e disciplinas, tanto nacional quanto internacionalmente, sendo considerado o padrão ideal para criar e manter repositórios digitais de longo prazo.

Sim, vale a pena. O OAIS garante que o investimento em preservação resulte em ativos informacionais que permanecem confiáveis, autênticos e acessíveis, assegurando que a identidade digital da organização e seu acervo probatório se mantenham robustos em face da inevitável obsolescência tecnológica.

Fontes:

Definition of AIP. Disponível em: https://aptrust.org/documentation-page/oais-documents/definition-of-aip/. 

Diretrizes para a Implementação de Repositórios Digitais Confiáveis Arquivísticos (RDC-Arq):Resolução n. 43, de 21 de dezembro de 2021.Disponível em: https://encurtador.com.br/zrGW

Informação no OAIS Ambiente OAIS Access Modelo Funcional.Disponível em: https://encurtador.com.br/PHtQ

Ações sustentáveis nas empresas: veja os benefícios e como começar. Disponível em: https://www.docusign.com/pt-br/blog/beneficios-acoes-sustentabilidade. 

Vantagens competitivas da padronização de processos. Disponível em: https://www.eightconsultoria.com/vantagens-competitivas-da-padronizacao-de-processos/

IASA (International Association of Sound and Audiovisual Archives).6.1.8 The Open Archival Information System (OAIS). Disponível em: https://www.iasa-web.org/tc04/open-archival-information-system-oais. 

Mitigação de Riscos: como identificar, reduzir e minimizar ameaças. Disponível em https://blog.neoway.com.br/plano-de-mitigacao-de-riscos/. 

Society Of American Archivists. Open Archival Information System (OAIS). Disponível em: https://www2.archivists.org/groups/standards-committee/open-archival-information-system-oais 

Introdução aos conceitos básicos do modeloOpen Archival Information System no contexto da arquivística. Disponível em: https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/download/1029/1116

Modelo lógico da informação no Open Archival... Dialnet. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/10219844.pdf.

Transformações dos pacotes de informação na cadeia de custódia digital arquivística. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/paginasaeb/article/download/12540/11781/45700

Modelo OAIS de Preservação Digital. Disponível em: https://oaiscloud.com/sobre/modelo-oais-de-preservacao-digital.html.

Open Archival Information System. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Open_Archival_Information_System.

Quais são os benefícios da padronização das normas contábeis por meio das IFRS?Disponível em: https://contabilidadecontroletotal.com.br/quais-sao-os-beneficios-da-padronizacao-das-normas-contabeis-por-meio-das-ifrs/.