Modelos de Requisitos para a Gestão de Documentos: evolução internacional e consolidação normativa no Brasil
Modelos de Requisitos para a Gestão de Documentos: evolução internacional e consolidação normativa no Brasil
Introdução
Este texto sistematiza os resultados dos Seminários de Pesquisa do Grupo de Pesquisa CNPq "Preservação Digital Sistêmica" (UFAL), que, no primeiro semestre de 2024, dedicou-se à análise crítica e histórica dos Modelos de Requisitos para a Gestão de Documentos (MRGD), especialmente para constituição de novas equipes de pesquisa e formação de pesquisadores para o grupo. A reflexão parte da emergência do DoD 5015.2 nos Estados Unidos, no contexto das investigações sobre a Doença Debilitante da Guerra do Golfo, e avança para um mapeamento dos modelos existentes em outras regiões do mundo. Em especial, são detalhados os modelos brasileiros, com destaque para a bifurcação normativa entre os poderes Executivo e Judiciário,um avanço. A discussão é balizada por fontes primárias e secundárias, com especial atenção à terminologia arquivística precisa e à avaliação das implicações legais, técnicas e institucionais de cada modelo. Após os estudos, os alunos foram convidados a realizar mapeamento de requisitos nos software livres adotados pelo Grupo CNPq e disponibilizados em máquinas virtuais para busca e checagem de requisitos funcionais, não funcionais e regras de negócio, assim, fortalecendo o domínio dos Modelos de Requisitos para a Gestão de Documentos.
1. Metodologia
A presente pesquisa utilizou abordagem qualitativa, com revisão documental e análise comparativa de modelos normativos de requisitos arquivísticos. As fontes utilizadas são exclusivamente documentos oficiais, normas internacionais, literatura científica revisada por pares e publicações institucionais com respaldo técnico e acadêmico. Todas as referências foram verificadas quanto à sua autenticidade, autoria e disponibilidade pública.
2. A origem dos modelos de requisitos: o caso do DoD 5015.2 nos Estados Unidos
A emergência do primeiro modelo de requisitos arquivísticos digitalmente orientado ocorreu no contexto de crise institucional nos Estados Unidos. Nos anos 1990, a pressão política e legal sobre o Departamento de Defesa (DoD) aumentou após as investigações sobre a “Doença Debilitante da Guerra do Golfo” (Gulf War Syndrome), que apontavam, entre outros problemas, a má gestão da documentação médica e logística dos veteranos (BROTHMAN, 2001).
Com apoio do Congresso, o Departamento de Defesa desenvolveu, entre 1995 e 1997, o primeiro padrão normativo formal para sistemas informatizados de gestão de documentos, com ênfase em requisitos funcionais e de segurança: o DoD 5015.2-STD. Esse modelo foi posteriormente homologado pelo National Archives and Records Administration (NARA) e adotado por diversas agências federais americanas.
“A formulação do DoD 5015.2-STD responde diretamente ao contexto de desorganização e perda documental enfrentado na década anterior. Seu caráter normativo e técnico oferece, pela primeira vez, um padrão de confiabilidade e rastreabilidade arquivística digital exigível legalmente” (THIBODEAU, 2002, p. 10).
O DoD 5015.2 passou por revisões ao longo dos anos, incluindo uma atualização significativa em 2007. Embora desenvolvido para fins militares e governamentais, seu impacto foi global, servindo de base para modelos posteriores em outros países.
3. Expansão internacional dos modelos de requisitos
3.1 Austrália: DIRKS e o EDRMS Specification
A Austrália se destacou por seu modelo integrado de desenvolvimento arquivístico e gestão de documentos, com base na metodologia DIRKS (Designing and Implementing Recordkeeping Systems), estabelecida nos anos 2000 pelos Archives Authority of New South Wales e pelo National Archives of Australia.
Complementarmente, foi lançado o EDRMS Functional Specification (2005), voltado para sistemas eletrônicos de gerenciamento de documentos com requisitos arquivísticos.
3.2 União Europeia: o MoReq e suas versões
O MoReq – Model Requirements for the Management of Electronic Records, publicado pela primeira vez em 2001 sob auspícios da Comissão Europeia, buscou harmonizar os critérios técnicos para sistemas de gestão documental no contexto da integração europeia.
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MoReq (2001)
A primeira versão do Model Requirements for the Management of Electronic Records (MoReq), publicada em 2001 sob a coordenação do DLM Forum e financiamento da Comissão Europeia, surgiu como um modelo de referência para a definição de requisitos funcionais aplicáveis a sistemas informatizados de gestão de documentos eletrônicos. Inspirado no DoD 5015.2, mas com foco nas administrações públicas europeias, o MoReq (2001) estabeleceu 397 requisitos (218 obrigatórios) voltados à captura, classificação, acesso, preservação, expurgo e auditoria de documentos arquivísticos digitais. Seu objetivo era fornecer um conjunto de parâmetros técnicos alinhados aos princípios arquivísticos de autenticidade, integridade, proveniência e confiabilidade, promovendo também o uso de metadados estruturados e controle de acesso. Embora não tivesse caráter normativo obrigatório, sua publicação representou um marco para a harmonização de práticas arquivísticas no âmbito digital europeu, ainda que com limitações quanto à flexibilidade e ao detalhamento técnico.
MoReq2 (2008)
Publicada em 2008, a versão MoReq2 representou uma revisão abrangente do modelo anterior, incorporando um elevado grau de modularidade e interoperabilidade, com o objetivo de adaptar-se a diferentes contextos institucionais e tecnológicos. Ao expandir o número de requisitos para mais de 500, a nova versão introduziu a concepção de módulos funcionais complementares, permitindo que organizações selecionassem funcionalidades conforme suas necessidades específicas. O MoReq2 também passou a incluir um modelo padronizado de metadados, compatível com normas como a ISO 23081 e o modelo OAIS, além de um repositório de testes visando a certificação de sistemas por meio de um centro oficial de conformidade. Outra inovação foi o uso estruturado de XML e o suporte explícito à assinatura digital, migração de formatos e preservação de longo prazo. Apesar de seu potencial, o modelo teve baixa adoção plena, devido à complexidade e à ausência de infraestrutura de suporte contínuo nos anos seguintes à sua publicação.
MoReq2010
O MoReq2010, publicado em sua versão final em 2011, trouxe uma transformação conceitual profunda em relação às versões anteriores, ao propor uma arquitetura em camadas para sistemas de gestão de documentos e informações digitais. Estruturado em torno de um núcleo de serviços obrigatórios — captura, preservação, acesso, classificação, auditoria — e serviços opcionais — workflow, colaboração, redacionamento —, o MoReq2010 priorizou a flexibilidade e a interoperabilidade entre sistemas diversos. Um de seus grandes diferenciais foi a adoção de vocabulários controlados e ontologias (em alinhamento com a web semântica), além do uso de tecnologias abertas como XML, RDF e OWL. Com suporte multilíngue e atenção a diferentes contextos jurídicos, essa versão apresentou-se como uma plataforma robusta e extensível, voltada tanto à preservação arquivística quanto à gestão informacional integrada. Contudo, sua elevada sofisticação técnica dificultou a aplicação prática em muitos contextos, resultando em adesão limitada e questionamentos sobre sua viabilidade operacional.Esses modelos foram promovidos pelo DLM Forum, e não têm força legal obrigatória, mas servem como base para implementação de sistemas em diversos países europeus.
3.3 Reino Unido: TNA Functional Requirements
O The National Archives (TNA) do Reino Unido publicou, em 2003, os Functional Requirements for Electronic Records Management Systems, adaptados à realidade britânica e compatíveis com o MoReq. Embora não atualizados desde então, continuam a ser usados como referência histórica.
3.4 América Latina
Na América Latina, observa-se a adoção gradual de modelos próprios, geralmente baseados em traduções e adaptações do MoReq e do DoD 5015.2. O Chile e a Colômbia avançaram com normativas próprias, mas é no Brasil que encontramos a mais clara institucionalização através da sua evolução, não só nos modelos de requisitos para a gestão de documentos, mas fruto dos pesquisadores das universidades brasileiras e da Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos - CTDE do Conarq que teve papel protagonista até ser extinta.
4. Modelos de Requisitos no Brasil
O Brasil se destaca por possuir dois Modelos de Requisitos arquivísticos distintos, normatizados por instituições centrais do Estado:
4.1 Modelo de Requisitos para os Poderes Executivo e Legislativo e a Iniciativa Privada – e-ARQ Brasil
Desenvolvido pela CTDE do Conarq, o e-ARQ Brasil foi publicado em 2011.
“O e-ARQ Brasil estabelece requisitos para a gestão arquivística de documentos digitais em sistemas informatizados, com base na diplomática contemporânea e no modelo OAIS” (FLORES, 2012, p. 63).
Versão 1 – 2011
É a primeira edição oficial do Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos – e-ARQ Brasil, publicada pelo CONARQ como norma técnica, com ISBN, ficha catalográfica, aprovação em plenária e disponibilização formal como parte da coleção oficial de publicações arquivísticas do órgão.
CONARQ. Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos – e-ARQ Brasil. 1. ed. Brasília: CONARQ, 2011.
Versão 2 – 2021
Atualização substancial do modelo, com reformulações conceituais, inclusão de novos requisitos, reforço à interoperabilidade com o RDC-Arq, e integração às normas ISO 16175, ISO 14721 (OAIS), ISO 16363 e ISO 19005.
CONARQ. Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos – e-ARQ Brasil. 2. ed. Brasília: CONARQ, 2021.
4.2 Modelo de Requisitos do Poder Judiciário – Requisitos Mínimos de Sistemas Informatizados de Gestão de Processos e Documentos Administrativos do PJ
Normatizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução nº 324/2020, este modelo incorpora diretrizes específicas para a realidade do Judiciário, alinhando-se também aos princípios da cadeia de custódia digital e interoperabilidade entre sistemas.
5. Linha do Tempo dos Modelos de Requisitos
| Ano | Modelo | País/Instituição |
|---|---|---|
| 1997 | DoD 5015.2-STD | EUA / DoD-NARA |
| 2001 | MoReq | União Europeia |
| 2003 | TNA Functional Requirements | Reino Unido |
| 2005 | EDRMS Specification | Austrália |
| 2011 | e-ARQ Brasil (1ª versão) | Brasil / CONARQ |
| 2008 | MoReq2 | União Europeia |
| 2010 | MoReq2010 | União Europeia |
| 2011 | e-ARQ Brasil (atualização - versão 2.0) | Brasil / CONARQ |
6. Considerações finais
A institucionalização dos Modelos de Requisitos é reflexo da consolidação de uma abordagem arquivística baseada na confiabilidade, autenticidade e preservação de longo prazo. A evolução desses modelos acompanha tanto os avanços da diplomática contemporânea quanto as exigências legais dos Estados democráticos. O caso brasileiro, com a coexistência de dois modelos robustos, expressa um avanço importante, embora ainda faltem mecanismos de certificação e auditoria nos moldes da ISO 16363.
Referências (padrão ABNT)
BROTHMAN, Brien. Orders of Value: probing the theoretical terms of archival practice. Archivaria, n. 52, 2001.
FLORES, Daniel. Gestão de documentos digitais: requisitos e práticas arquivísticas no ambiente computacional. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
NATIONAL ARCHIVES AND RECORDS ADMINISTRATION (NARA). DoD 5015.2-STD: Design Criteria Standard for Electronic Records Management Software Applications. Washington, DC: Department of Defense, 2007.
DURANTI, Luciana; EASTWOOD, Terry. Ensuring Trust and Authenticity in Electronic Records. UNESCO, 2002.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos – e-ARQ Brasil. Brasília: CONARQ, 2011.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 324, de 30 de junho de 2020. Brasília: CNJ, 2020.
DLM FORUM. MoReq2010 – Modular Requirements for Records Systems. Bruxelas: DLM, 2010.
NATIONAL ARCHIVES OF AUSTRALIA. EDRMS Functional Specification. Canberra, 2005.
Resumo (PT)
O artigo apresenta uma análise histórica e comparativa dos Modelos de Requisitos para a Gestão de Documentos, desde o DoD 5015.2 até os modelos atuais brasileiros. Destaca-se a importância da confiabilidade arquivística digital e a normatização da gestão documental nos poderes da República.
Abstract (EN)
This article provides a historical and comparative analysis of the Records Management Requirements Models, from the DoD 5015.2 to the current Brazilian standards. The study emphasizes archival digital trust and the normative consolidation of document management in public institutions.
Resumen (ES)
El artículo presenta un análisis histórico y comparativo de los Modelos de Requisitos para la Gestión Documental, desde el DoD 5015.2 hasta los modelos brasileños actuales. Se destaca la importancia de la confiabilidad digital y la normatización de la gestión documental.
Résumé (FR)
Cet article présente une analyse historique et comparative des Modèles d'Exigences pour la Gestion des Documents, du DoD 5015.2 aux modèles brésiliens actuels. Il met en lumière l’importance de la fiabilité archivistique numérique et de la normalisation de la gestion documentaire.
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