A obrigatoriedade legal da criação de Arquivos Municipais e o papel da transparência ativa no Brasil contemporâneo
A obrigatoriedade legal da criação de Arquivos Municipais e o papel da transparência ativa no Brasil contemporâneo
A construção de uma administração pública transparente, eficiente e responsável passa, necessariamente, pela adequada gestão de documentos e informações. Os Arquivos Municipais, nesse sentido, são instituições essenciais para a preservação da memória local, o acesso à informação e o exercício da cidadania. Este artigo aborda a obrigatoriedade legal da criação e institucionalização dos Arquivos Municipais no Brasil, com base em dispositivos constitucionais, legais e em diretrizes arquivísticas, além de discutir sua intersecção com a transparência ativa e o uso de plataformas como o AtoM.
Fundamentos legais para a criação de Arquivos Municipais
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 216, §2º, que cabe ao Poder Público a gestão da documentação governamental e providências para franquear sua consulta a todos. A Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, reforça a responsabilidade da administração pública direta e indireta de todas as esferas de governo — incluindo a municipal — na gestão de documentos e na proteção especial aos documentos de valor histórico. O artigo 1º da referida lei dispõe:
“É dever do Poder Público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação.”
Apesar de sua amplitude, a Lei nº 8.159/91 não especifica o profissional responsável por essa gestão. Nesse ponto, a Lei nº 6.546, de 4 de julho de 1978, que regulamenta a profissão de arquivista, torna-se fundamental. Ela determina que as atividades de organização, conservação, análise, classificação e arquivamento de documentos devem ser exercidas exclusivamente por profissionais habilitados, ou seja, bacharéis em Arquivologia.
Dessa forma, a criação de Arquivos Municipais demanda não apenas infraestrutura física e normativa, mas também a contratação de profissionais concursados, como os arquivistas, conforme estipulado legalmente. A ausência desses profissionais compromete a eficácia das ações de gestão documental e o cumprimento dos princípios da administração pública, como a publicidade e a eficiência.
Diretrizes e orientações específicas para os municípios
O Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) tem elaborado importantes instrumentos de apoio à criação e estruturação de Arquivos Municipais. Entre as publicações que se destacam para esse propósito estão:
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Diretrizes para a Construção de Arquivos Municipais (2016);
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Diretrizes para a Criação de Arquivos Públicos Municipais (2011);
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Orientações para a Elaboração de Projetos de Lei de Criação de Arquivos Públicos Municipais (2012);
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Subsídios para Elaboração de Projetos de Lei de Arquivos Públicos Municipais (2009).
Esses documentos orientam a respeito da estrutura organizacional mínima necessária, da elaboração de legislações locais, do papel do gestor público e das condições físicas e técnicas adequadas para a instalação de um Arquivo Municipal. Defende-se que os municípios devem instituir seus arquivos com base em normas jurídicas próprias, mas alinhadas às diretrizes nacionais de gestão documental e preservação do patrimônio arquivístico.
Os documentos citados podem ser acessados diretamente no repositório do Conarq:1
O papel da transparência ativa e o uso de plataformas arquivísticas
A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) estabelece que os órgãos públicos devem divulgar, independentemente de requerimentos, informações de interesse coletivo ou geral, especialmente por meio da internet — princípio conhecido como transparência ativa. No entanto, como revelou o Acórdão nº 2050/2022 do Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), mais de 66% das cidades avaliadas não possuem ferramentas adequadas para promover essa divulgação.
Esse dado revela uma grave deficiência no cumprimento da LAI e demonstra a urgência de adoção de instrumentos que garantam a integridade, autenticidade e acessibilidade da documentação pública. Para tal finalidade, o uso de plataformas como o AtoM (Access to Memory), uma ferramenta de software livre desenvolvida sob os princípios arquivísticos, tem se mostrado uma solução viável. O AtoM é baseado no modelo de descrição internacional ISAD(G) e permite não apenas organizar e disponibilizar acervos arquivísticos, mas também interoperar com Repositórios Digitais Confiáveis (RDC-Arq), garantindo cadeia de custódia digital e preservação a longo prazo.
Pesquisadores como Flores (UFAL), Gracia (UNESP), Tânia Gava (UFES) e outros têm discutido a adoção do AtoM e a integração com o RDC-Arq como pilares para a modernização da gestão documental pública. O Manual Técnico do AtoM, publicado pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), é outro recurso fundamental para implementação adequada da plataforma em municípios.
Estudos recentes enfatizam que a transparência ativa deve englobar não apenas dados com impacto financeiro, mas todos os documentos arquivísticos gerados no âmbito da administração pública, independentemente de sua tipologia. A abordagem arquivística garante a contextualização, autenticidade e confiabilidade da informação, aspectos fundamentais para o exercício pleno do direito à informação e o controle social.
Considerações finais
A criação de Arquivos Municipais não é apenas uma boa prática administrativa, mas uma obrigação legal que visa garantir a memória institucional, o acesso à informação e a efetivação dos princípios constitucionais da publicidade e da eficiência. Para tanto, é indispensável que os municípios elaborem legislações específicas, realizem concursos para contratação de arquivistas, adotem sistemas informatizados adequados como o AtoM e promovam uma política de transparência ativa efetiva.
A construção de uma cultura de acesso e preservação documental não pode prescindir de investimentos institucionais, profissionais qualificados e tecnologias interoperáveis, sob pena de perpetuar a opacidade e o desprezo pela documentação pública.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
BRASIL. Lei nº 6.546, de 4 de julho de 1978. Dispõe sobre a regulamentação das profissões de Arquivista e de Técnico de Arquivo. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6546.htm
BRASIL. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8159.htm
BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Lei de Acesso à Informação. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Diretrizes para a Criação de Arquivos Públicos Municipais. Brasília: Conarq, 2011.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Diretrizes para a Construção de Arquivos Municipais. Brasília: Conarq, 2016.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Orientações para a Elaboração de Projetos de Lei de Criação de Arquivos Públicos Municipais. Brasília: Conarq, 2012.
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Subsídios para Elaboração de Projetos de Lei de Arquivos Públicos Municipais. Brasília: Conarq, 2009.
FLORES, D. A. et al. A Lei de Acesso à Informação e os documentos arquivísticos: por uma transparência ativa arquivística. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Daniel-Flores-4
FLORES, D. Arquivística e transparência pública: interfaces entre o AtoM e o acesso à informação. In: Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Daniel-Flores-4
GAVA, Tânia.
GRACIA, Regina.
Arquivística e transparência pública: interfaces entre o AtoM e o acesso à informação. In: Anais do Congresso Brasileiro de Arquivologia, 2021.
IBICT. Manual Técnico da Plataforma AtoM. Brasília: Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, 2020.
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