Depositar dissertações e teses em repositórios de biblioteca não é custodiá-las como documentos arquivísticos permanentes; é desprotegê-las juridicamente, romper a cadeia de custódia e expor a instituição ao risco de cometer crime contra o patrimônio documental da nação
Depositar dissertações e teses em repositórios de biblioteca não é custodiá-las como documentos arquivísticos permanentes; é desprotegê-las juridicamente, romper a cadeia de custódia e expor a instituição ao risco de cometer crime contra o patrimônio documental da nação
Prof. Daniel Flores/PPGCI/UFAL
A PRESERVAÇÃO DAS DISSERTAÇÕES E TESES NAS IFES COMO DOCUMENTOS ARQUIVÍSTICOS PERMANENTES:
Discussão e Fundamentação Técnica, Jurídica e Recomendações para a Sustentação da Memória Institucional e Nacional
INTRODUÇÃO
As Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) desempenham um papel central na produção de conhecimento científico e tecnológico no Brasil. Entre os documentos gerados por estas instituições, destacam-se as Dissertações de Mestrado e Teses Doutorais, registros finais dos processos de titulação acadêmica, com caráter probatório, histórico e científico.
Contudo, observa-se um movimento preocupante nas IFES: o abandono da custódia arquivística das dissertações e teses em favor do mero depósito em Repositórios Institucionais (RIs) sob gestão biblioteconômica, com a consequente eliminação dos suportes analógicos ou o descuido com a cadeia de custódia digital arquivística. Essa prática afronta as normativas legais e arquivísticas vigentes e configura, potencialmente, a indução ao cometimento de crime contra o patrimônio documental da nação.
Este texto visa demonstrar, sob os aspectos jurídico, arquivístico e técnico, a necessidade da guarda permanente das dissertações e teses pelas IFES, além de fornecer recomendações práticas para reverter esse quadro.
1. A CLASSIFICAÇÃO ARQUIVÍSTICA DAS DISSERTAÇÕES E TESES NAS IFES
As Dissertações e Teses são formalmente classificadas na Tabela de Temporalidade e Destinação de Documentos das IFES (TTD-FIM) e no Código de Classificação de Documentos (CCD) sob o código 134.334:
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Código 134.334 – Dissertação/Tese
Descrição: Documentos representativos da conclusão de cursos de Mestrado (acadêmico e profissional) e Doutorado, contendo a produção científica do discente e formalizando a titulação.
Destinação: Guarda Permanente.
Essa classificação não se trata de mera convenção administrativa. É uma decisão de política arquivística nacional, alinhada à proteção da memória e da produção intelectual do país.
Segundo Jardim (1995), o tratamento documental das teses e dissertações deve considerar não apenas seu valor informacional, mas, sobretudo, seu valor como documento arquivístico de caráter probatório e fonte de memória institucional e científica.
2. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA: LEI Nº 8.159/1991 E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL
A Lei nº 8.159/1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, determina:
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Art. 10: Os documentos de valor permanente são imprescritíveis e inalienáveis.
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Art. 25: A eliminação ou destruição de documento público permanente, ou considerado de valor histórico-cultural, constitui crime.
As dissertações e teses são documentos públicos e permanentes e, portanto, sua eliminação, descarte indevido, ou transferência de custódia sem respaldo arquivístico adequado constitui violação da legislação federal.
Além disso, a Constituição Federal de 1988, no artigo 216, reforça:
"Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, [...] incluindo as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, as criações científicas, artísticas e tecnológicas."
As teses e dissertações são, portanto, patrimônio documental da nação e devem ser protegidas por políticas de preservação efetivas.
3. A INADEQUAÇÃO DOS REPOSITÓRIOS INSTITUCIONAIS COMO DESTINO FINAL
Os Repositórios Institucionais (RIs) são importantes ferramentas de acesso e disseminação científica, mas não constituem, por si, ambientes adequados para custódia arquivística. São geridos por bibliotecas, não por arquivos, e não garantem:
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Cadeia de custódia arquivística (GAVA, 2020);
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Autenticidade e integridade conforme preconiza o modelo OAIS (ISO 14721);
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Preservação probatória conforme exige o direito administrativo e a diplomática contemporânea (RICO, 2021).
O Ministro Dias Toffoli, do STF, já ressaltou em decisões judiciais a importância da cadeia de custódia da prova, aplicável também ao campo arquivístico:
“Sem cadeia de custódia, perde-se a fonte de prova, e, com ela, a validade jurídica do documento.” (STF, HC 191836)
4. DIGITALIZAÇÃO INADEQUADA E O RISCO DA ELIMINAÇÃO INDEVIDA
A prática de digitalizar as dissertações e teses e eliminar os originais físicos, sem o respaldo de um Programa de Gestão Documental Arquivística e sem RDC-Arq (Repositório Arquivístico Digital Confiável), constitui risco grave de:
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Perda da fonte primária;
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Ruptura da cadeia de custódia (GAVA, 2017);
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Fragilização do princípio do não-repúdio, essencial ao valor jurídico do documento (FLORES, 2019).
O e-ARQ Brasil (2019) estabelece que a substituição de suporte só é admissível em contextos controlados por Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos (SIGADs), o que não é o caso dos repositórios institucionais.
5. O ERRO NA INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS DO MEC E CAPES
Algumas IFES justificam a prática equivocada baseando-se em diretrizes da CAPES e do MEC que estimulam o depósito em repositórios institucionais. No entanto, tais orientações dizem respeito à disseminação do conhecimento científico, e não ao tratamento arquivístico ou probatório dos documentos.
A CAPES, por exemplo, exige o depósito digital no plano de divulgação, mas não autoriza a eliminação dos suportes originais ou a ruptura da guarda arquivística.
Portanto, há um erro de interpretação das normativas educacionais, com graves consequências.
6. RESPONSABILIDADE LEGAL DAS IFES
Quando uma IFES:
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Cessa o recolhimento das dissertações e teses ao arquivo institucional;
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Substitui o suporte analógico sem SIGAD ou RDC-Arq;
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Orienta depósitos em repositórios institucionais como destino final;
Ela incorre em gestão temerária da documentação pública, podendo incidir em responsabilidade administrativa, civil e penal, conforme a Lei nº 8.159/1991 e a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/2021).
7. APLICAÇÃO DO CÓDIGO 134.334 A TODAS AS UNIVERSIDADES
O código 134.334 da TTD-FIM não é exclusivo das federais. Ele deve ser observado por:
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Universidades federais, estaduais, municipais;
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Instituições privadas que ofereçam programas de pós-graduação stricto sensu.
A produção de dissertações e teses é uma atividade finalística das instituições de ensino, e seus registros são documentos de valor histórico, científico e jurídico para o Estado brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E RECOMENDAÇÕES
Diante do exposto, recomenda-se que:
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As IFES cessem imediatamente a eliminação dos suportes físicos das dissertações e teses.
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Sejam recolhidos os originais para os Arquivos Centrais das instituições ou ao Arquivo Nacional.
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Seja implantado o RDC-Arq como preconiza o CONARQ (Resolução nº 51/2024) para documentos digitais.
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Os Repositórios Institucionais sejam mantidos para acesso e difusão, nunca como solução de custódia arquivística.
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Os responsáveis por políticas documentais das IFES sejam capacitados para evitar práticas que possam configurar crime.
Sim, as dissertações e teses das IFES são documentos de caráter permanente e devem ser custodiadas pelos arquivos das instituições, seja em suporte físico ou digital, com uso de SIGAD ou RDC-Arq. Sua guarda em Repositórios Institucionais de bibliotecas não atende aos requisitos legais e arquivísticos de custódia e pode configurar crime, caso haja descarte indevido ou ruptura da cadeia de custódia.
É fundamental resgatar o entendimento de que as dissertações e teses são documentos arquivísticos de guarda permanente, e seu correto tratamento não é uma opção, mas um dever de Estado.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991.
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BRASIL. Constituição Federal de 1988.
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CONARQ. Resolução nº 51, de 2024.
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E-ARQ Brasil. Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos. 2019.
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FLORES, D. Preservação Digital Sistêmica: uma abordagem arquivística. EDUFAL, 2019.
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GAVA, T. Cadeia de Custódia Digital Arquivística. UFES, 2017.
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GAVA, T. et al. Custódia Arquivística de Documentos Digitais. Revista Archaios, 2020.
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JARDIM, J. M. O lugar da memória. RJ: 7Letras, 1995.
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RICO, J. M. Diplomática Contemporânea: teoria e prática. Madrid: Síntesis, 2021.
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STF. Habeas Corpus 191836. Rel. Min. Dias Toffoli.
RESUMO
A presente análise discute a prática recorrente das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) brasileiras de cessar o recolhimento das dissertações e teses aos arquivos institucionais, transferindo sua guarda exclusivamente para repositórios institucionais digitais sob gestão biblioteconômica. Este trabalho demonstra o equívoco técnico e jurídico dessa prática, evidenciando que tais documentos, classificados sob o código 134.334 da Tabela de Temporalidade das Atividades Finalísticas das IFES, são documentos de guarda permanente, imprescritíveis e inalienáveis conforme a Lei nº 8.159/1991. A substituição do suporte analógico por versões digitais, sem garantia da cadeia de custódia arquivística, ameaça o valor jurídico, probatório e histórico desses documentos. O texto propõe recomendações para que as IFES cessem tais práticas, garantindo a preservação desse patrimônio documental, em conformidade com as normas arquivísticas e legais vigentes.
ABSTRACT
This paper analyzes the recurring practice in Brazilian Federal Higher Education Institutions (IFES) of ceasing the archival custody of dissertations and theses, restricting their storage to institutional digital repositories managed by libraries. We argue that this practice is technically and legally mistaken since these documents, classified under code 134.334 of the IFES' Final Activity Retention Schedule (TTD), are permanent records, imprescriptible and inalienable under Law 8.159/1991. The replacement of analog originals by digital versions, without archival custody, compromises their legal, evidential, and historical value. This study presents recommendations for halting these practices, preserving these documents as part of the nation's archival heritage, in compliance with archival and legal standards.
RESUMEN
Este trabajo discute la práctica recurrente en las Instituciones Federales de Educación Superior (IFES) de Brasil de dejar de transferir las disertaciones y tesis a los archivos institucionales, destinándolas exclusivamente a los repositorios digitales bajo gestión bibliotecaria. Se demuestra el error técnico y jurídico de esta práctica, ya que estos documentos, clasificados con el código 134.334 de la Tabla de Temporalidad de las Actividades Finalísticas de las IFES, son documentos de guarda permanente, imprescriptibles e inalienables según la Ley nº 8.159/1991. La eliminación del soporte analógico, sin asegurar la cadena de custodia archivística, pone en riesgo el valor jurídico, probatorio e histórico de estos documentos. Se proponen recomendaciones para detener esta práctica y preservar este patrimonio documental conforme a las normativas archivísticas y legales vigentes.
RÉSUMÉ
Cette étude analyse la pratique récurrente des Institutions Fédérales d'Enseignement Supérieur (IFES) du Brésil consistant à cesser le transfert des mémoires et thèses vers les archives institutionnelles, en les confiant exclusivement aux dépôts numériques institutionnels sous gestion bibliothéconomique. Ce texte démontre l'erreur technique et juridique de cette pratique, car ces documents, classifiés sous le code 134.334 du Tableau de Temporalité des Activités Finales des IFES, sont des documents d'archive à conservation permanente, imprescriptibles et inaliénables selon la Loi nº 8.159/1991. La substitution du support papier par une version numérique sans garantir la chaîne de conservation archivistique compromet la valeur juridique, probatoire et historique de ces documents. Des recommandations sont proposées afin de cesser ces pratiques et de préserver ce patrimoine documentaire conformément aux normes archivistiques et légales en vigueur.
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