Por que Arquivos, Bibliotecas e GLAMs Devem Priorizar Software Livre? Uma Questão Ética, Jurídica e de Soberania Informacional

Software Livre como Política Pública para os Arquivos, Bibliotecas, Museus, Galerias e Centros de Documentação, Memória, etc 

 A gestão de documentos, dados, acervos e informações públicas é uma função estratégica das instituições que compõem o ecossistema GLAM (Galerias, Bibliotecas, Arquivos e Museus). Essas instituições são, por definição, guardiãs da memória, do patrimônio documental e da informação de interesse público. No entanto, há um debate urgente e necessário sobre como e onde esses dados e acervos são armazenados, gerenciados e disponibilizados.

Este texto propõe uma reflexão crítica sobre a adoção de software livre como política pública prioritária para a gestão da informação pública, defendendo que o uso de softwares proprietários em arquivos e bibliotecas públicas não é apenas uma questão técnica, mas também ética, legal e política.


O que é Software Livre?

O conceito de Software Livre não se refere apenas a software gratuito. Trata-se de um modelo baseado em quatro liberdades essenciais, segundo a definição da Free Software Foundation (STALLMAN, 2010):

  1. Liberdade de usar o software para qualquer finalidade.

  2. Liberdade de estudar como o software funciona e adaptá-lo às suas necessidades (acesso ao código-fonte).

  3. Liberdade de redistribuir cópias.

  4. Liberdade de melhorar o software e compartilhar as melhorias com a comunidade.

Essas liberdades promovem a autonomia tecnológica, a transparência e a independência das instituições públicas, além de prevenir o chamado "vendor lock-in" (ou aprisionamento tecnológico), quando a instituição depende exclusivamente de um fornecedor privado para manter seus sistemas funcionando.


Por que as GLAMs devem adotar Software Livre?

As GLAMs têm responsabilidades específicas em relação à gestão da memória, da cultura e da informação pública. Entre os motivos para priorizar software livre nessas instituições, destacam-se:

1. Soberania Informacional

A soberania sobre a informação pública implica que o Estado e as instituições públicas devem ter controle total sobre os sistemas que armazenam e processam dados públicos, incluindo documentos, registros históricos, metadados, acervos bibliográficos e arquivísticos.

Ao utilizar software proprietário, a gestão desses dados fica, em parte, dependente das condições impostas por empresas privadas, que podem controlar o formato dos dados, a atualização do sistema e até restringir o acesso ou a exportação dos arquivos.

2. Transparência e Auditoria

Softwares livres permitem a auditoria do código-fonte, o que é essencial em sistemas que lidam com informações públicas. Isso garante que não haja funcionalidades ocultas, backdoors ou restrições não documentadas.

A Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) estabelece que a gestão da informação pública deve respeitar os princípios da transparência e da publicidade, o que se alinha diretamente com a filosofia do software livre.

3. Preservação Digital e Interoperabilidade

A preservação digital de longo prazo, preconizada pelo Modelo de Referência OAIS (ISO 14721:2025) e pelos princípios do e-ARQ Brasil (CONARQ, 2009), exige o uso de formatos abertos e padrões interoperáveis. Softwares proprietários frequentemente utilizam formatos fechados, dificultando migrações e aumentando o risco de obsolescência tecnológica.


A Questão Legal e Ética

Os profissionais da informação, incluindo arquivistas, bibliotecários e museólogos, devem estar atentos à legislação e à ética profissional. A gestão de documentos públicos com software proprietário impõe riscos jurídicos e viola princípios constitucionais e legais. Vejamos por quê:

Constituição Federal (1988)

O artigo 37 da CF/88 determina que a administração pública deve obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O uso de sistemas fechados, não auditáveis, com códigos proprietários, fere a moralidade administrativa e prejudica a publicidade e o acesso pleno à informação pública.

Lei nº 8.159/1991 (Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados)

Esta lei garante que a gestão documental e a proteção especial aos documentos de arquivo de valor permanente são dever do Estado, o que implica não terceirizar ou submeter essa função a fornecedores privados de software sem a devida salvaguarda do interesse público.

Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação - LAI)

A LAI exige transparência ativa e acesso à informação pública. Como garantir esse direito se os dados estiverem em um sistema proprietário com código fechado? O segredo algorítmico não pode sobrepor-se ao direito do cidadão de acessar a informação pública.

Decreto nº 8.638/2016 (Política Nacional de Informação e Dados Abertos)

Este decreto estabelece que as informações públicas devem ser disponibilizadas em formatos abertos e não proprietários, reforçando a necessidade de abandonar soluções fechadas que restringem a reutilização e interoperabilidade dos dados.

Resolução nº 51 do CONARQ (2024)

A Resolução nº 51, que regulamenta o Repositório Arquivístico Digital Confiável (RDC-Arq), também enfatiza o uso de formatos abertos, padrões interoperáveis e práticas transparentes de preservação digital, o que se alinha com a adoção do software livre.


Os Riscos do Software Proprietário em Acervos Públicos

  • Aprisionamento tecnológico (vendor lock-in): a instituição fica dependente do fornecedor para manutenção, atualização e até mesmo acesso a seus próprios dados.

  • Formato de dados fechado: risco de perda de acesso a longo prazo.

  • Falta de transparência: impossibilidade de auditar o código e verificar a integridade do sistema.

  • Privatização do patrimônio público: quando acervos e documentos públicos ficam sob controle de plataformas privadas.


Exemplos de Softwares Livres para GLAMs

  • AtoM (Access to Memory) – Sistema de descrição arquivística.

  • DSpace – Repositório digital para bibliotecas e museus.

  • Omeka – Plataforma de exposição e curadoria digital.

  • ICA-AtoM e Archivematica – Preservação e acesso aos documentos digitais.

  • Koha – Sistema integrado de bibliotecas (ILS).

  • CollectiveAccess – Sistema de gestão de coleções museológicas.


Conclusão: Software Livre como Política Pública

O debate sobre o software livre não é apenas técnico: é político, ético e jurídico. As instituições públicas não podem tratar a questão da tecnologia como mera contratação de soluções de mercado. É preciso pensar em soberania informacional, em preservação da memória e em respeito à legislação brasileira.

Os profissionais da informação têm um papel crucial nessa transformação. Arquivistas, bibliotecários, museólogos e gestores públicos devem se posicionar de forma crítica e consciente, exigindo políticas públicas que promovam o uso de software livre nas GLAMs, garantindo o pleno acesso à informação, a preservação do patrimônio documental e o respeito aos princípios republicanos.


Referências

  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

  • BRASIL. Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados.

  • BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Lei de Acesso à Informação.

  • BRASIL. Decreto nº 8.638, de 15 de janeiro de 2016. Institui a Política de Dados Abertos.

  • CONARQ. Resolução nº 51, de 11 de dezembro de 2024. Dispõe sobre requisitos para RDC-Arq.

  • CONARQ. e-ARQ Brasil: Modelo de requisitos para sistemas informatizados de gestão arquivística de documentos. 2009.

  • STALLMAN, Richard. Software Livre, Sociedade Livre. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010.

  • FLORES, Daniel. Preservação Digital Sistêmica. EDUFAL, 2024.

  • GAVA, Tânia. Cadeia de Custódia Digital Arquivística. EdUFES, 2023.

  • GNU Project. https://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt-br.html


Prof. Daniel Flores - PPGCI UFAL


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